domingo, 20 de abril de 2014

Quem tá aí é Seu Capangueiro?

Era sábado de manhã. Com uma trouxa de anáguas na cabeça lá vai Chibita. Lá vai Chibita pra beira da fonte bater a barrela. Depois de esfregar bem pra tirar o encardido ela bate nas pedras e deixa quarar por um tempo. Em seguida enxágua e estende na corda. Depois de secar vem a segunda fase, que é a goma. Oh inferno! Por último é o purgatório: passar a ferro. Aí é a escravidão declarada. Triste de quem é Chibita, pois sabe que nunca será alforriada. 

Mas apesar do trabalho Chibita vai cantando uma cantiga de Caboclo, pois hoje tem festa na casa de pai Valdomiro e essa ela não pode perder.


"Entra na roda quem quer entrar. É samba de caboclo quem quiser pode dançar"


Chibita faz o trabalho rápido, lava tudo mal lavado, enxagua de qualquer jeito e joga tudo por cima da corda. 'Ah! Tô nem aí, quero mais é que a mãe-de-santo se exploda,' Pensou. Chibita precisa terminar tudo logo pra cuidar da sua roupa: uma saia de periguete, uma mini blusa e uma sandália de segunda. Tá pronta. Mas vai ter que ir com duas ebomi do terreiro, Marlene e Tereza. 'Essas peste, cachaceiras dos inferno. Vou dar o zig nessas cabrunca,' pensou com raiva. 

Chibita vai pra festa porque gosta de ver o samba e os moleque do atabaque. Quem sabe não sai com uma merenda? Já as ebomi vão por causa da cerveja mesmo. São cardíacas, diabéticas e alcólatras. Sendo que desses males o último é o menor. Bebem pra esquecer os problemas e acabam causando mais, pois se metem em briga, em fuxico, em ejó e com gente caceteira. Confiam no Orisa, e não saem de casa sem despachar Exú com uma rica farofa de dendê. Por via das dúvidas carrega cada uma sua navalha na parte interna da coxa. Afinal a casa de Valdomiro fica na Baixa da Jaqueira, região de tráfico, comandada por Boréstia, ogã da Yansã de Valdomiro, que tendo fechado o corpo em sete terreiros do recôncavo já mandou subir mais 28. Não precisa nem dizer que Boréstia é ogã de faca. De faca não, de peixeira. Destrincha toda sorte de bicho, de duas e de quatro pata, de pena e de couro, que berra e que fala. Mas Boréstia é bom filho. Faz a segurança da bocada e das festas. Segurança física, alimentar e etílica. Boréstia manda descer não engradados mas caminhão de engradados de cerveja pra festa de Seu Capangueiro, seu Caboclo protetor. 
Quando a festa se aproxima Boréstia Não se faz de rogado e gasta pesado, afinal não deixa de ser um investimento, pois na bebedeira da festa tem sempre aqueles que precisam se manter espertos, acesos, e Boréstia os socorre.

E lá vão as três descendo a Baixa da Jaqueira em direção ao barracão armado na rua. Para a alegria das ebomis, Seu Capangueiro as recebe com uma garrafa de Skol. 'Nem vem borrifar cerveja em mim que quem vai beber aqui hoje sou eu,' Pensou Tereza. E sentaram-se pra apreciar a festa. O Caboclo percebendo que alí brincaria só, se retirou. Foi chamar seus irmãos em outra roda.


Chibita não tirava olho nos tocadores. Os moleques sarados desciam a mão no couro. Cada cantiga uma provocação, e ainda tinha muita gente acordada. Mas o que chamou sua atenção foi um moço bonito, de pele morena, cabelos anelados, encorporado com também Seu Capangueiro. 'Ah mas que Caboclo bonito,' pensou. Mas o Caboclo já havia sido laçado por Jerônimo, pai de santo do Queimadinho, que não tirava o oho da matéria, nem do material. Seu Capangueiro trazia uma capanga avantajada, o que deixou Jerônimo nervoso a ponto de perguntar a Chibita se ela conhecia o cavalo. 'Sei quem é não. Mas bem que queria saber," respondeu. Jerônimo então se aproximou do caboclo e o abraçou. Não uma abraço de entidade de longe, de aruanda, mas um abraço de travar a carne, com direito a alisada nas costas e tudo. Por pouco o samba não vira arrocha. Mas o abraço não foi o suficiente e não satisfieto Jerônimo cochichou qualquer coisa no ouvido do caboclo, um pedido talvez ou quem sabe um agradecimento. Chibita bem que tentou mas não entendeu, e continuou ligada na movimentação, afinal, quem não bebe é quem tudo percebe. 


No fim da festa foi procurar as ebomi e as encontrou já escornadas num canto do barracão. Ao redor delas dezenas de garrafas vazias, mas entornariam mais se ainda houvesse. Levantaram e foram se adiantando quando Chibita viu entrar num taxi Jerônimo e a matéria que estava encorporada com caboclo. Pensou, 'Oxe! Já se conheciam? Quem tava alí era Seu Capangueiro?' 
Vai saber, Chibita. 



quarta-feira, 9 de abril de 2014

Quem é Chibita?

Vamos esclarecer desde já. Chibita não fala, pensa. E pensa muito, e muito rápido a ponto de parar atônita, meio destraida, desenfocada, fica fora do eixo a destrambelhada. Pensa tanto que lhe faltam palavras para expressar o que pensa. Nem teria como as ter. Nunca estudou. Ia pra escola mas não conseguia se concentrar nas aulas. Na sua cabeça o som dos atabaques, a cantigas, os ejó. Tudo a distraia. A subalterna não fala e muito menos escreve, portanto, falarei por ela, pois a conheço bem. Conheci várias; Chibita não é uma só. Onde há uma comunidade de terreiro haverá lá uma ou várias Chibitas. Tem mãe-de-santo que diz que todo terreiro tem que ter uma Chibita. Para lhe facilitar a vida, por certo.

Chibita quer dizer serva, escrava, doméstica, ser inferior, objeto de exploração indispensável às comunidades de terreiro da Bahia. Seja bequeira, seja tombada, todas dispõem de uma pelo menos. Chibita ficou famosa através de Painho, personagem de Chico Anísio dos idos anos oitenta. Painho estava sempre acompanhado de sua Cunhã, termo derivado de abiã. Segundo dizem, certa feita Chico participou de um programa de rádio com o babalorixá Paulinho de Oxum, que estava acomapnhado de uma de suas abiã. Em determinado momento Paulinho sentiu sede e chamou a Chibita, "Abiã!!!" E Chico catou a idéia, mas não ouviu direito o nome abiã e reproduziu como entendeu: Cunhã! Pronto! Chibita ganhou o Brasil e o mundo, mas nunca passou de abiã. Chico morreu e com ele seu personagem Painho, que nunca iniciou sua Chibita Cunhã. E assim como a Cunhã de Painho, Chibita está sempre sentada ao lado do pai ou da mãe de santo. Sempre de prontidão, de guarda, calada, atenta e inexistente. Sempre servindo. Eternamente ouvindo, e pensando, e chingando, e desconjurando. Mas Chibita não fala.

Chibita tem seis irmãos, não conheceu o pai, nem o seu nem de seus irmãos. Sua mãe, filha de Odé, era mulher batalhadora. Criou os filhos sozinha vendendo fato na feira, como pode, mas tudo tem limite. O corpo também conhece o seu. Sucumbiu sem fazer santo. Foram enrolando, embromando. Hoje diziam, "esse barco não dá, tá faltando Oxum pra você entrar." Depois, "não tem mãe pequena, fica pro próximo." E assim foi perdendo a vontade, pois a de Odé há tempos perdera. Morreu abiã sem direito a carrego nem a axexê. Chibita queria ser diferente, queria se iniciar, fazer obrigação, se tornar uma ebomi, mas sem família, sem uma tribo, e sem dinheiro estava presa ao abiãnato. 

Vida de Chibita é difícil. Acorda cedo, quando dorme. Cozinha, lava, passa, engoma, e desconjura. A Sinhá, ou melhor, a mãe-de-santo, tem que estar sempre bela e bem vestida e isto dá muito trabalho. Pros outros, é claro. E Chibita faz de um tudo. Não porque quer ou porque gosta, mas porque não tem escolha. Se for mandada embora vai pra onde? Sem parente nem aderente vive a vida observar, escutar, pensar e espraguejar, pois é humana e tem sentimento de todo tipo. 

Sua vida social é a macumba. Conhece todos os terreiros do bairro, dos "tombados" aos bequeiros. Sim! Há diversas classes de candomblés na Bahia e os que têm "pedigree" se referem aos demais como candomblés de beco, ou seja, os vira-lata, de água barrenta, axé de panela que todos metem a mão, e vários outros termos pejorativos. O candomblé, enquanto religião de oprimido, sabe reproduzir bem os valores opressores, mesmo que o discurso negue isto.  

Chibita espera fazer santo. Não sentada porque não tem tempo pra isso. É filha de Iansã, é perseverante, é forte e determinada. E enquanto não é chamada vai vivendo aqui e ali, entre uma festa de Exú e uma de Padilha, entre um terreiro tombado e vários becos.